Laura Medioli

Laura Medioli

Laura Medioli é escritora e presidente da Sempre Editora, responsável pela publicação dos jornais Super, O TEMPO e O Tempo Betim, além da rádio FM O TEMPO e do portal O TEMPO. Formada em estudos sociais, Laura já atuou como professora e se dedica de forma intensa hoje à causa da proteção animal.

LAURA MEDIOLI

Lá vem a Zubáinda

Laura Medioli relembra com carinho da 'prima torta'. Leia mais

Por Laura Medioli
Publicado em 19 de agosto de 2023 | 03:00
 
 

Prima torta de minha mãe, não sei bem de onde surgiu a Cecília. O fato é que apareceu uma vez em minha casa e de lá nunca mais saiu. Não havia um fim de semana sequer que não viesse com suas roupas, dentaduras e camisolas. Dormir em nossa casa, uma espécie de chácara aberta a todos, era seu programa favorito.

Tinha um astral ótimo! Adorava pular Carnaval em Ouro Preto e seduzir viúvos solitários. Seu maior sonho era se casar. Tudo bem, este é o sonho de muitas mulheres e, como amor não tem idade, Cecília, com seus 70 anos, jamais perdera as esperanças.

Com o passar do tempo, foi tomando “ares de dona da casa”, para o desespero da meninada. Era a guardiã da despensa. Ai do menino que se atrevesse a abrir uma lata de biscoitos ou se deliciar com uma ambrosia. Mantinha a porta trancada e a chave escondida para que, quando estivesse sozinha, pudesse fazer seu ataque gastronômico.

Dormia no meu quarto, se apossando da cama de minhas amigas. Elas, se quisessem, que dormissem no chão. Aliás, na cama ou no chão, o que menos fazíamos era dormir. Pudera! Como fechar os olhos no meio daquele bombardeio de roncos da Cecília? Um inferno! E, como se não bastasse, tínhamos que permanecer caladas, sem proferir uma palavra, porque, do contrário, lá vinha xingo. Cansei de reclamar com minha mãe, que, sendo a “mãe da paciência”, dizia para termos calma e compreensão.

Infelizmente, adolescentes são meio rebeldes, e o que menos tínhamos era calma e compreensão. Havia noites em que eu e minhas amigas ficávamos mastigando cenoura crua, fazendo um barulho dos diabos só para irritá-la. E conseguíamos! Cecília ficava louca. Ela se levantava xingando e às vezes até chorando. Dizia que ia falar com a minha mãe sobre a nossa falta de respeito. Essa guerrinha fria entre a gente durou um bocado de tempo, até ela chegar à conclusão de que dormir em meio a um bando de adolescentes apaixonadas, que passavam as noites falando de garotos e pretendentes, definitivamente não daria certo. Pegou suas trouxas e se mudou de quarto. Vitória!

Ao mesmo tempo que era extremamente alegre e contava casos engraçados e impróprios para menores, era extremamente chata. Implicava com tudo. Com nossas conversas, nossas fomes e nossas sedes. Coca-Cola? Goiabada com queijo? Imagina! A geladeira de minha casa era dela. Só dela! Deus, como comia! Seus quadris exuberantes tinham razão de ser.

Em pouco tempo ganhou o apelido de “Zubáinda”, que, mesmo sem ter significado algum, traduzia bem o seu tipo.

– Lá vem a Zubáinda! – diziam os meninos quando, de manhã cedo, viam-na despontar com suas sacolas na estradinha de nossa casa.

Seu tom de voz era um espanto. Com muitos decibéis a mais, de longe se fazia ouvir. Queria saber de tudo e, sem ser convidada, adorava invadir conversas alheias.

Com o passar dos anos, quando deixamos de ser meninas-moças para sermos apenas moças, as coisas mudaram. Aí, sim, chegaram a calma e a paciência de que tanto falava minha mãe. Cecília já não escondia mais a chave da despensa, já não xingava como antigamente, como também já não sorria tanto. A idade foi batendo e deixando marcas. De repente, parou de contar suas proezas com os viúvos de Ouro Preto. Queria mais era um cantinho para descansar e ter tranquilidade. Imagino que, para quem durante mais de 20 anos lecionou num grupo escolar, sossego no fim da vida seja a meta mais desejada. E era só isso o que ela queria. E foi isso que encontrou em nossa casa.

Cecília morreu doente, sob os cuidados de minha mãe e da alma caridosa da nossa sempre fiel escudeira, Preta. Deixou saudades.

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