OPINIÃO

Verde e vida

Não é apenas o humano que sofre frente à crueldade

Por Vittorio Medioli

Publicado em 14 de outubro de 2024 | 15:40

 
 
'O futuro é inevitavelmente do vegetarianismo' 'O futuro é inevitavelmente do vegetarianismo' Foto: Freepik/Reprodução
Vittorio Medioli
Colunista de Opinião
Colunista de Opinião
Vittorio Medioli Vittorio Medioli
aspas

Eu também acreditei por muitos anos que as ações e os pensamentos não teriam consequência. O inferno era tão incompreensível, fora de cogitação, como o castigo por uma maldade que ninguém via.

Quando criança, pensava: “Por que os adultos se comportam tão diferentemente de quanto ensina o Sermão da Montanha, a expressão mais sublime de Jesus Cristo?”

Por que razão uns parecem mais sadios e mais alegres, apresentam-se mais atraentes e sua presença desperta prazer e paz?

Por que razão me levavam à igreja para assistir à leitura de ensinamentos de fraternidade e desprendimento para, em seguida, de um canto da mesa, me confrontar com aquilo que se dizia que era o correto?

O padre lia o Evangelho de Marcos: “Se alguém quiser acompanhar-me, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me”. Onde estava a cruz daqueles crentes?

Que sentido tinha o versículo de Hebreus “Tudo é nu e descoberto aos olhos daquele a quem havemos de prestar contas”?

Intrigava-me aquele dinheiro oferecido, “vai reconciliar-te primeiro com teu irmão, e depois vem, e apresenta a tua oferta”. Não conseguia interpretar “Quando deres esmola, não faças tocar trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem glorificados pelos homens”.

E como interpretar “Amai a vossos inimigos, bendizei os que vos maldizem, fazei bem aos que vos odeiam e orai pelos que vos maltratam e vos perseguem” para que, dessa forma, sejais filhos do Pai que está nos céus? Que céus eram esses?

E por que tantas brigas, “Se perdoardes aos homens as suas ofensas, também vosso Pai celestial perdoará a vós”? Mais fácil e simples impossível, mas quem se comportava dessa forma?

Luta por todo lado para acumular riquezas materiais apesar de o sermão ensinar singelamente: “Ajuntai tesouros no céu, onde nem a traça, nem a ferrugem consomem, e onde os ladrões não minam, nem roubam. Porque onde estiver o vosso tesouro, aí estará também o vosso coração”. Não se ouvia na rua falar de coração.

Do canto da mesa via chegar travessas de carnes, que contrastavam com quanto tinha ouvido: “Eis que lhes dou todas as plantas que nascem em toda a terra e produzem sementes, e todas as árvores que dão frutos com sementes. Elas servirão de alimento para vocês (Gênesis 1.29)”. Mas as carnes não citadas estavam à minha frente em contraste com “A todas as feras, a todas as aves do céu, a tudo que rasteja sobre a terra e que é animado de vida, eu dou como alimento toda a verdura das plantas” (Gênesis 1.30). Nada disso correspondia ao momento em que vivia, e assim pensei: se a Bíblia é sagrada, alguma coisa mudou, pois apenas na sexta-feira as carnes não eram servidas.

Quantas tormentas para chegar aos 16 anos e enveredar para o vegetarianismo. Ser “massacrado” por essa atitude onde me sentava a uma mesa. Acostumei-me a evitar as carnes sem explicar, a sair do apuro por uma súbita dor de estômago, falta de apetite. Não comer carne como o médico recomendava, ou canja de galinha, descartar cubinhos em alguns pratos. Minha mãe vivia preocupada, insistia em todos os almoços, chegando ao desespero para eu aceitar a carne. O tempo passou, e reagi sem me perturbar, antecipava-me à ladainha de que as proteínas animais eram fundamentais para a saúde, etc., etc. “Bom, que cadáver teremos hoje na mesa?" Lamentava também que na geladeira tivesse restos de animais.

Minha mãe por três décadas defendeu a necessidade de proteína animal e colocava médicos da nossa família para cantar a imprescindibilidade de ingeri-las.

Entretanto, ao me ver com 50 anos ainda vivo, com alguns sucessos evidentes, sinais vitais preservados, minha mãe aceitou que a dieta vegetariana era viável e não destruía o ser humano. A presença da carne na cozinha e na geladeira quase desapareceu; sempre que voltava a visitá-la, havia uma variedade de pratos especiais com vegetais, cereais, frutas e sementes preparados com o maior cuidado e carinho.

Hoje ser vegetariano é normal, os garçons não se assustam, os jovens especialmente se convertem para essa dieta, que tem vantagens comprovadas. A macrobiótica, o ayurveda, as flores, as amêndoas preservam a juventude, os cabelos, o cheiro corporal mais agradável, o hálito mais fresco; retardam as rugas, conservam os olhos brilhando, o cérebro funcionando; poupam a alma dos fluidos do sofrimento dos animais sacrificados. A mulheres veganas são as mais bonitas, suaves, saudáveis. Os veganos preferem se relacionar com veganos, e os carnívoros também.

Sirva de exemplo o caso dos búfalos que fugiram de um matadouro em Pedro Leopoldo. Enlouquecidos, dispararam pelas vias da cidade e foram abatidos a tiros. Melhor que num matadouro, aguardando na fila e vendo os irmãos caírem. Mostraram que não é apenas o humano que sofre frente à crueldade.

Justamente a dor, o inconformismo quando o homem, que imaginavam “bom companheiro e até pai”, se transforma num carrasco. As carnes do sacrificado se carregam de sofrimento e ajudam a minorar a saúde, a beleza, a serenidade de quem participa da matança.

O futuro é inevitavelmente do vegetarianismo. Cerca de 37 vegetarianos, segundo estudos qualificados, são alimentados durante um ano pela produção vegetal de um hectare de terra, e apenas um só carnívoro no mesmo espaço.

Os cristãos, que são a quase totalidade da população no Brasil, se aperceberão, um dia, de que os ensinamentos do Velho e do Novo Testamento têm a predominância de infinitas tonalidades verdes e, para chegar lá, respeitarão os animais.