OPINIÃO

A dor de mãe

A vida me ensinou cedo a 'dor de mãe', a pior de todas, assim como seu amor

Por Vittorio Medioli

Publicado em 03 de novembro de 2024 | 10:41

 
 
A vida me ensinou cedo a “dor de mãe”, a pior de todas, assim como seu amor A vida me ensinou cedo a “dor de mãe”, a pior de todas, assim como seu amor Foto: Kristina Paukshtite/Pexels
Vittorio Medioli
Colunista de Opinião
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Em 1958, assisti pela tevê sem cores à final da Copa do Mundo, aquele histórico 5 a 2 em Estocolmo, que revelou ao mundo alguns fenômenos de atletas, e o maior deles: Pelé, com apenas 17 anos. Do lado sueco, o ponteiro direto Kurt Hamrin, contraponto ao brasileiro Garrincha.

Alguns meses depois, passou a integrar o Milan, meu time de coração, o reserva de Pelé na seleção, Mazzola, que em seguida assumiu na Itália seu nome de nascimento, José Altafini.

Este teve duas temporadas impactantes, se transformou no ídolo de multidões e no meu pessoal, menino de 10 anos. Pedi à minha mãe que comprasse uma camisa do Milan e costurasse nas costas o número 9 de Altafini, pois eu era um centroavante nato, com instinto de “bola no fundo da rede”.

Futebol era a minha diversão preferida, e os jogos do Milan, raramente transmitidos pela tevê, eu escutava pelo radinho, vibrando e literalmente “babando” com as proezas de Altafini, o grande goleador – uma verdadeira máquina de gols. Foi assim que, ao retorno do ano escolar, em 1961, depois de um verão passado nas quadras de areia na praia, de grama e de terra, na fazenda ao lado da casa dos meus pais, em Vicofertile, retornei às aulas em outubro.

O meu professor, do sexto ano, acabou organizando, numa tarde e às pressas, um jogo num campo de periferia de Parma. Durante o intervalo, numa tarde ensolarada, saí com minha bicicleta à procura de água num bar, a dois quarteirões. Nisso, um amigo, Roberto, pegou carona comigo. Eu pedalando e ele sentado no selim, segurando-se na minha camisa. No trajeto de volta, esbarrei com a pedaleira direita no meio-fio, e nesse momento a bicicleta deu uma guinada no sentido da pista contrária, onde os carros passavam em alta velocidade. Meu amigo se desvencilhou, enquanto eu fiquei agarrado à bicicleta caída na contramão. Preso, no asfalto, aos tubos cruzados da bicicleta, ouvi o som gritante de uma freada de carro. Vi a cor, vermelho-escuro e preto, e debaixo da placa dianteira um terrível cinza enquanto eu era arrastado. Tudo se apagou da minha memória nesse momento e nunca mais voltou.

Ao reabrir os olhos, algum tempo depois, minha mãe chorando. Entendi que estava dentro de uma ambulância assistindo a uma discussão acalorada. Minha mãe tirou o lençol que me cobria e ficou paralisada, com as mãos segurando o rosto. Espanto! Eu não conseguia me movimentar, mas levantei a cabeça e vi um espetáculo horroroso: as duas extremidades do fêmur esquerdo, abruptamente rompidas, se cruzam fora do músculo aberto da coxa, em frangalhos. A carne era cor de salmão, e não havia uma gota de sangue escorrendo, apenas uma pasta escura saindo das extremidades truncadas do fêmur. Uma mão piedosa recolocou o lençol e afastou minha mãe, em estado de choque.

Ao ver aquela cena, era difícil apostar que a perna seria salva de uma amputação. Foram perdidos, no atrito do arrasto sobre o asfalto, cerca de cinco centímetros do fêmur e outros tantos de músculo da coxa, sem contar outras lesões nas costelas, braços, ombros e resto do corpo.

Nesse momento, apesar de não sentir qualquer dor, no estado de choque emocional, o sofrimento de minha mãe me machucou, atravessou meu peito e me fez sentir culpado como nunca. Até hoje, 63 anos depois, não esqueço um segundo daqueles poucos instantes de lucidez no interior da ambulância.

Esse episódio me obrigou a ficar 90 dias com pinos trespassando ossos que eram tracionados para estimular o alongamento do fêmur. Não estou escrevendo os detalhes, mas uma mão divina me fez voltar ao normal, felizmente. Nisso a vontade de ver minha mãe sorrindo fez que em sete meses, antecipando a recuperação prevista, dedicando-me à fisioterapia e aos exercícios, retornasse, milagrosamente, em final de abril, a disputar o torneio de futebol da escola, com excepcionais resultados e gols nos adversários.

Mais velho, passei por um transplante de fígado e inúmeros sofrimentos. Ela estando na Itália e eu no Brasil, consegui esconder essas desventuras e aos meus irmãos roguei para deixá-la fora dessa minha experiência, pois seria agravada muito com o sofrimento e as preocupações dela.

A vida me ensinou cedo a “dor de mãe”, a pior de todas, assim como seu amor. Aprendi a lamentar as atitudes de filhos que não se apercebem, não poupam, não amenizam, o que seria dever deles.

Antes de minha mãe falecer, com 95 anos, em decorrência da quebra do fêmur esquerdo, me deixou uma singela carta escrita em folha de caderno, afirmando que o perdão é a suprema escola do sábio e agradecendo imensamente as satisfações e alegrias que lhe proporcionei.

Se eu pudesse retirar deste planeta algo muito desagradável, seria a “dor de mãe”.