OPINIÃO

Situação de sangue

Se a Venezuela se encontrasse do outro lado do oceano, num continente remoto, poderia compreender-se a frieza do governo brasileiro na abordagem dessa tragédia

Por Vittorio Medioli
Publicado em 18 de agosto de 2024 | 12:45
 
 
A demonstrator holds a sign as they take part in the "Protest for Truth" rally called by the Venezuelan opposition to demand that the Venezuelan government recognize Edmundo Gonzalez Urrutia's victory in the presidential elections, in Miami, Florida, August 17, 2024. Venezuelan opposition leader Maria Corina Machado urged supporters August 16, 2024, to "keep up the fight" on the eve of protests called against the election victory claimed by strongman Nicolas Maduro but widely rejected at home and abroad. Machado had called for fresh demonstrations in more than 300 cities in Venezuela and abroad, what she called a "Protest for the Truth." (Photo by CHANDAN KHANNA / AFP)

As agências internacionais de notícias informam a morte de 25 pessoas durante a repressão aos movimentos de rua que contestam a “vitória” eleitoral de Nicolás Maduro sobre seu adversário – com supostos 52% dos votos válidos.

A proclamação do resultado ocorreu por meio do CNE – um equivalente ao TSE brasileiro –, sem dar a menor transparência dos dados ou acesso aos relatórios de apuração.

Os venezuelanos, segundo o reeleito Maduro, têm que acreditar que ele ganhou legalmente, apesar de o país se encontrar destruído e seu povo, desempregado, esfomeado e sem liberdade. Ou seja, o inverso do que se materializa em democracias de verdade, mergulhadas em situações semelhantes, com inúmeros e graves motivos para desejar o fim de um governo falido, desastroso e ditatorial.

Maduro está se decompondo, mas pretende que se acredite e se aplauda sua vitória, não pela transparência dos dados, mas pela fé e respeitabilidade de um órgão que tem a escolha e a nomeação decididas apenas por ele. Típico exemplo daquilo que notáveis brasileiros afirmam: “Eleição não se ganha, se toma”.

Os mortos evidentemente confirmam o desespero, de um lado, e a truculência sanguinária, do outro. Mais do que uma queda de braço – uma previsão afirmada por Maduro –, “será um banho de sangue”.

Em outros países a derrota eleitoral não justifica uma gota de sangue, quanto mais o banho antevisto, que já começou. Em pleno século XXI, trata-se da resistência sanguinária a aceitar a realidade, por parte de um sujeito obcecado, que não gosta de ser chamado de “ditador”, apesar de ser o retrato mais vivo que temos à disposição.

Se a Venezuela se encontrasse do outro lado do oceano, num continente remoto, poderia compreender-se a frieza do governo brasileiro na abordagem dessa tragédia, essencialmente humanitária. Porém, os efeitos se materializam também em nosso país pela imigração descontrolada de milhares de pessoas desamparadas.

O Brasil já concedeu apoios morais e políticos, além de generosos aportes financeiros, que se transformaram em calotes de alguns bilhões de dólares, nunca cobrados e, ainda, premiados pelo silêncio e pela omissão, como a ponte sobre o rio Orinoco, de US$ 1,22 bilhão.

O Brasil dificilmente pode ocultar sua cumplicidade. Além de avais e financiamentos, a postura benevolente com os descalabros autoritários ampara e encoraja os despautérios dos ditadores bolivarianos.

E, se os vizinhos como o Brasil se tornam avalistas morais, as condenações que chegam de longe se enfraquecem.

A situação de derrocada do governo de Maduro, num país que já teve uma das maiores prosperidades do planeta, deveria sugerir aos governos do Brasil e da Colômbia, os principais países impactados, a iniciativa de discutir sanções contra Nicolás Maduro, forçando novas eleições, com fiscalização da ONU, e, em seguida, o restabelecimento de um governo democrático.

Deve-se ainda propor o financiamento internacional para a reconstrução econômica do país e o retorno ao berço natal da população.

A atual postura, marcada por omissão e velada cumplicidade, ajuda a consolidar a repressão num “banho de sangue”, quando, do contrário, poderia ser decisiva para o bem de milhões de venezuelanos.

É um absurdo, considerando que o Brasil, à procura de protagonismo internacional, vem sugerindo medidas no conflito ucraniano e não sabe dar conta da urgência e gravidade dos deveres de casa.