OPINIÃO

No fundo do peito

Eu tenho alguns personagens assentados na primeira fileira das lembranças

Por Vittorio Medioli
Publicado em 22 de setembro de 2024 | 11:22
 
 
Meus eternos agradecimentos

Existem pessoas raras que se tornam inesquecíveis por vez. Figuras que marcaram, que furaram a muralha da indiferença, para se acomodar no “fundo do peito” e de lá não sair. Eu tenho alguns personagens assentados na primeira fileira das lembranças.

Foi também por causa de um deles que acabei deixando, aos 20 anos, o curso de direito em Parma, em que registrava um sucesso surpreendente, para entrar na faculdade de filosofia em Milão.

Essa figura extraordinária era o filho do fundador do colégio De Amicis de Milão, Michele Maria Tumminelli, ex-deputado constituinte italiano ao término da Segunda Guerra Mundial, em 1946, pedagogo genial e idealizador do “sistema biopedagógico de ensino”. Eu acabei, com 15 anos, internado nesse colégio e acredito que isso mudou o rumo da minha vida. Lá foi possível usufruir de alguns dos melhores professores do momento na Itália, num ambiente de disciplina correta, princípios cívicos, conhecimentos privilegiados, estímulos para os estudos e as atividades físicas e condições fantásticas de aprender do melhor.

O estudo da filosofia começou a me fascinar por causa dele, do professor Mário Tumminelli, filho do dono do colégio. Elegante, refinado, sóbrio, um olhar faiscante, reflexo de uma inteligência rara e irrequieta, muito acima do normal. Personalidade intensa, culta, ardente. Suas aulas deixavam perfeitamente compreensíveis os pensamentos mais complexos e até metafísicos.

Chegava preparado à sala para atrair a atenção dos alunos, transmitir o mais importante, o essencial, com raciocínios diretos, claros e firmes. Era declaradamente apaixonado pela obra de Giordano Bruno, o monge filósofo que no século XVI era disputado pelas cortes reais da Inglaterra e da França e, ainda, pela mais opulenta república da época, Veneza. Sua presença era requisitada na “hermética” e renascentista Florença. Sua trajetória meteórica acabou como herege numa fogueira em Roma, depois de um longo e cruel aprisionamento, no dia 17 de fevereiro de 1600, na Piazza dei Fiori. O professor Mário tinha uma aversão incontrolável ao número 17 e sempre o relacionava com o dia da execução de Giordano Bruno.

Culto, tinha uma fala hipnotizante, a aula dele nunca cansava. Dele aprendi, em boa dose, a “capacidade de síntese”, algo que reside mais na intuição do que na razão, em esferas indecifráveis, de que infelizmente carece a humanidade em geral.

Até pessoas de amplo conhecimento não aproveitam o que está à sua disposição por essa carência de síntese em suas escolhas.

Segundo as formulações dele, seria impossível apoiar a escolha de notório corrupto para dirigir uma nação. Como? Ele era seguidor dos ensinamentos platônicos, da importância das virtudes do rei (o governante) filósofo, fundamentais para conduzir um povo. O estoico imperador Marco Aurélio surgia como exemplo imperecível e insuperável.

A procura da essência do homem o atormentou atrás de uma aparente segurança. Parece que o grande desafio ele não superou e o levou ao fim precoce de sua vida, atormentado por dúvidas hamletianas e “dores” goethianas, que levaria para sua próxima existência.

Posso ver sua vida como uma obra inacabada, um esforço imenso (que lhe valerá, onde quer que ele esteja). Espiava o espiritualismo quase envergonhado de longe, bloqueado pelo “ateísmo” de origem.

O que adianta saber, mas ser incapaz de direcionar, dominar e transformar os conhecimentos em soluções, inovações, decisões acertadas, realizações concretas e verdadeiras? Um oriental diria que o segredo está em “buddhi”, um degrau acima de “manas” e um abaixo de “atma”.

A “síntese” é o bem criador, a “antítese” é o mal destruidor. Os louros do sucesso muitas vezes se manifestam apenas interiormente.

Ele, enquanto a chama ardeu, foi um exemplo de raciocínio lúcido, lógico, de inteligência acelerada.

O apartamento onde vivia (com a esposa, modelo famosa, que, ao casar-se, passou a cuidar apenas do marido e do filho) exuberava de obras de arte, de livros raros, de objetos antigos, de fragrâncias intensas e peças arqueológicas astecas que ele levava de viagens frequentes ao México.

Costumava convidar algumas pessoas para noites de conversas agradáveis, regadas com moderação, que eu adorava.

Procurei na web por ele. Nada, absolutamente nada, nenhuma citação de uma das personalidades mais fascinantes que conheci. Apenas outro Mário, filho dele, e um homônimo, mas sem “filosofia”, sem alma atormentada, sem gênio incompreendido. A ele, meu eterno agradecimento.