É raro conhecer uma pessoa que com sua presença consiga deixar no ar uma sensação de sutil prazer e simples satisfação. Mais frequentemente se encontra alguém atordoado por uma mente em luta contra desejos, frustrações, complexos, contradições, ódios e amores mal resolvidos.
Buda explicava aos seus discípulos que existem dois tipos de amor. Um, no mundo dos homens, que é a outra face e contrário ao ódio. Sim, um “oposto”, porque não seria possível perceber o amor se não existisse uma experiência de ódio. Como a luz se faz notar nas alternâncias com a escuridão, o calor em contraposição ao frio, a saúde com as enfermidades, o amor tem contraponto no ódio.
Assim, é muito frequente encontrar casais que brigam, gritam e xingam, mas depois têm momentos de enlaces e amor.
Tem casais masoquistas, que só sentem prazer, ou conseguem “se amar”, depois de uma pancadaria. Como, infelizmente, assisti num final de ano hospedado numa casa de praia. O vizinho, de uma residência próxima, brigou com a companheira num bate-boca feroz, aos gritos e palavrões madrugada afora, quebrando até louças. Desassossegaram os empregados da casa deles e toda a vizinhança. Contudo, no dia seguinte, como se nada tivesse acontecido, se cortejavam à borda da piscina.
O segundo tipo de amor é experimentado apenas pelo iluminado, pelo “evoluído” até um estado de “samadhi”, aquele que extingue os negativos, os contrários como o ódio, a dor, a enfermidade, a morte. Até o próprio corpo humano se torna supérfluo. Buda o manteve, depois da iluminação, por 40 anos, servindo-se dele para preparar seus discípulos.
O sentimento dito de amor transcendental, ou sem ódio, é definido pelo budismo como “compaixão”, uma condição de divina benevolência, de aceitação compreensiva das humanas e materiais limitações.
Uma anedota ensinada nos monastérios zen atribui a Buda uma conversa com um discípulo. O melhor dos seus alunos, Purnakashyapa, que se sentiu pronto para servir aos homens, depois de longos anos de aprendizado, perguntou ao Mestre: “Aonde devo ir? Onde devo pregar sua mensagem?”. Buda respondeu: “Você mesmo pode escolher”. Logo, o discípulo: “Irei a um remoto rincão de Bihar, a província de Suka”.
Buda ponderou: “É melhor que troque sua escolha, porque a gente dessa província é muito violenta, perversa, e ninguém se atreve a ir lá para ensinar a não violência, o amor e a compaixão. Escolha outro destino”.
Mas o discípulo insistiu: “Permita-me ir aí porque ninguém foi, e alguém tem que ir”.
O Mestre: “Então, te farei três perguntas antes de te autorizar. A primeira: se as pessoas dessa província o insultarem, humilharem, como reagirá?”
O discípulo: “Sentirei que são muito boas se simplesmente me insultarem, porque, então, não me terão espancado”.
Buda: “Então, a segunda pergunta: se começarem a te espancar, como se sentirá?”.
O discípulo: “Provarei que são boas pessoas. Poderiam ter me matado, mas simplesmente estão me espancando”.
E Buda: “Agora a terceira pergunta: se realmente o matarem, no momento de morrer, como se sentirá?”
Nisso, o discípulo: “Sentir-me-ei agradecido a ti e a eles. Se me matarem, terão me libertado de uma vida na qual tantos enganos são possíveis. Terão me libertado, e ficarei muito agradecido”.
O Mestre: “Agora pode ir a qualquer lugar. O mundo inteiro é o céu para você. Agora não há problema, com essa mente não há nada de mau neste mundo”.
Procura o belo, esquece o grotesco, então chega o momento em que também o grotesco se torna belo, e ninguém poderá te perturbar. Procura ser feliz em qualquer momento, e assim não haverá nada que possa chamar de desventura.
Uma mente positiva embeleza tudo. Perde-se o sofrimento das derrotas, até porque não procura qualquer vitória. Aceita e aproveita tudo como sendo a experiência mais certa para ele.
A culminância da existência, segundo o budismo, é extinguir qualquer desejo, assim não haverá sofrimento, e o último lance é extinguir o desejo de “apagar os desejos”. Assim, a gota se torna o próprio oceano.