Tradução do silêncio
Leia a coluna de Vittorio Medioli em O TEMPO
O tradutor oficial da corte inglesa na segunda parte do século XVI, o poliglota Giovanni Florio, era versado, ao mesmo tempo, em latim, italiano, alemão, francês, espanhol e inglês. Como excelso tradutor da sua época, sustentava teorias de perfeccionismo na sua profissão: “Precisa interpretar (de um pronunciamento) corretamente o silêncio, além de ser necessário conhecer muito bem a língua de um homem”.
Ele era mais que um simples intérprete e chegou a colher uma admiração irrestrita de Elizabeth I por suas “traduções” que iam além da transliteração e captavam o “não dito”, as entrelinhas, as nuances que ficariam ocultas.
A palavra, é preciso lembrar, é um ato de criação – não apenas de ideias, mas de descrições. Pode ser vista como uma magia dos homens, já que os animais não a possuem.
Pode alegrar, felicitar ou, ainda, machucar mais que uma lâmina. Faz surgir, do nada, objetos, sentimentos, circunstâncias. Não há limites para a palavra. Substitui as imagens não presenciadas. Pode fazer descer às profundezas e captar o segredo dos bons, as maldades dos diabos; revelar a inconsistência dos ignorantes, o vasto oceano de sabedoria.
A palavra certa, no momento certo, no local adequado, pode iluminar a compreensão – até dar voo e criar um ambiente sublime. Pode também entristecer, aterrorizar, levar à morte.
Florio tinha ciência de que uma má tradução poderia provocar perda irreparável, condenação imerecida e até ódios e horrores. Bem por isso, no fim de sua existência, forjado pelas responsabilidades cruciais, confessava que “a gramática e a palavra eram os meios úteis para pacificar a humanidade, mais do que tratados de paz e acordos comerciais firmados entre homens de Estado”.
A palavra correta, no tom mais próprio à circunstância, quebra a resistência da ignorância, penetra no íntimo, abre o coração, conquista territórios e riquezas, ergue a paz no meio dos desentendimentos e das incompreensões. Mas, cuidado: “Para compreender o ânimo de um homem, é preciso escutar como ele fala, pois a maioria das coisas fica sem ser dita, nas entrelinhas silenciosas. A parte não dita pode ser a mais importante e fixa o sentido da verdade”.
Pode parecer complicado, mas é próprio do homem, por tendência egoísta e preservacionista, fugir do que lhe desagrada, do que o complica, do que o desmente, do que o faz lembrar-se de que está em falta com a verdade.
Se um cisco no olho alheio assume mais gravidade que a trave que cega a visão do próprio estulto, é por aí: “As palavras são as cores de um quadro; o silêncio, as sombras”. Por isso, é preciso prestar mais atenção às áreas de treva; nelas, como no silêncio, o indivíduo esconde o que o incomoda, aquilo com que o povo não pode sonhar. Transcorridos mais de 400 anos, se o tradutor de Elizabeth I reencarnasse no Brasil, teria que se dedicar a “interpretar o não dito dos culpados”, daqueles que, do trono, falam despudoradamente sem parar. Falam por medo de ter que escutar. Viajam para longe porque recolhem menos vaias que por aqui.